Thiago Luzzatto
Resumo
Este artigo apresenta uma análise comparativa da profissão de dublê de ação no Brasil e nos Estados Unidos, examinando diferenças e semelhanças quanto ao tamanho do mercado, à estrutura das indústrias de cinema e TV, às organizações de classe e à legislação, bem como à relevância cultural e econômica, à valorização profissional, às oportunidades de carreira, à visibilidade na mídia e à percepção pública. Com base em pesquisa bibliográfica e na experiência prática do autor, que atua como dublê profissional em ambos os países, discute-se como o contexto de cada mercado influencia o exercício da profissão. Verificou-se que, embora ambas as nações reconheçam a importância dos dublês na produção audiovisual, existem discrepâncias significativas em termos de escala de produção, condições de trabalho, reconhecimento institucional e perspectivas de carreira. Esta comparação busca evidenciar os desafios e os avanços da categoria em cada país, contribuindo para uma compreensão mais ampla do papel dos dublês de ação e para o diálogo sobre melhorias na valorização desses profissionais essenciais.
Palavras-chave: dublês de ação; mercado de trabalho; indústria cinematográfica; Brasil; Estados Unidos; análise comparativa.
Introdução
A profissão de dublê de ação é fundamental para a indústria do entretenimento, viabilizando a realização de cenas perigosas e acrobacias que garantem realismo e emoção em filmes, séries e novelas. Desde os primórdios do cinema, esses profissionais assumem riscos físicos para preservar a integridade de atores e atrizes, tornando possíveis sequências de lutas, perseguições, explosões e outras ações de alto impacto visual. Apesar da importância inegável, muitas vezes arriscando a própria vida no exercício cotidiano da profissão, os dublês historicamente permaneceram nos bastidores, com pouco reconhecimento proporcional à contribuição que oferecem às obras audiovisuais. Nos últimos anos, contudo, a categoria vem ganhando mais visibilidade e reivindicando maior valorização: após décadas de campanha, a Academia de Hollywood anunciou a criação de um Oscar específico para coordenadores de dublês e equipes de acrobacias, previsto para a cerimônia de 2028.
Entretanto, o contexto profissional desses artistas varia consideravelmente de acordo com o país. No mercado norte-americano, ancorado pela indústria de Hollywood, os dublês de ação contam com um volume significativamente maior de produções e com estruturas formais de apoio, como sindicatos influentes e premiações próprias. Já no cenário brasileiro, embora exista demanda por dublês em produções nacionais, o setor opera em escala menor e enfrenta desafios distintos, seja em termos de oportunidades de trabalho, organização da classe ou reconhecimento público. Thiago Luzzatto, autor deste artigo e profissional da área com atuação tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, observa na prática diferenças marcantes entre as duas realidades, mas também identifica pontos em comum, como a necessidade de treinamento rigoroso, versatilidade e foco absoluto na segurança durante as filmagens.
A seguir, o presente estudo estrutura-se em tópicos que comparam os dois mercados a partir de aspectos-chave. Inicialmente, discute-se o tamanho do mercado e o número de profissionais atuantes em cada país, bem como a estrutura da indústria cinematográfica e televisiva relacionada à atuação dos dublês. Em seguida, abordam-se as associações profissionais, os sindicatos e as leis trabalhistas que amparam (ou não) esses especialistas, além da relevância cultural e econômica de seu trabalho em cada contexto. Também são analisados o grau de valorização profissional e de reconhecimento obtido pelos dublês, as oportunidades de carreira disponíveis, a visibilidade na mídia e a percepção pública da profissão. Por fim, sintetizam-se as principais similaridades e diferenças identificadas, seguidas pelas considerações finais.
Tamanho do mercado e número de profissionais
Ao comparar o mercado de dublês de ação nos Estados Unidos e no Brasil, a disparidade de escala torna-se evidente. O setor norte-americano é amplamente superior tanto em número absoluto de profissionais quanto na quantidade de produções que demandam o trabalho de dublês. Para se ter uma ideia, mais de 7 mil dublês estão afiliados ao sindicato Screen Actors Guild-American Federation of Television and Radio Artists (SAG-AFTRA) nos Estados Unidos, embora apenas uma fração consiga se dedicar integralmente à profissão. Essa cifra supera, de longe, qualquer estimativa disponível para o Brasil, onde a comunidade de dublês é significativamente menor e menos formalmente registrada.
Não há dados oficiais públicos sobre o número exato de profissionais atuantes no mercado brasileiro, mas estima-se que ele seja composto por algumas dezenas ou, no máximo, poucas centenas de dublês ativos, concentrados principalmente nos grandes polos de produção audiovisual, como Rio de Janeiro e São Paulo. Em parte, essa diferença reflete o volume consideravelmente menor de filmes e séries de ação produzidos nacionalmente, em contraste com o intenso ritmo de produção hollywoodiano.
A diferença de escala também se evidencia no contingente de dublês envolvidos por produção. Em Hollywood, grandes franquias de ação empregam equipes numerosas, um filme médio do gênero ação/aventura chegou a creditar, em média, cerca de 46 profissionais de dublê em uma única produção. No panorama geral, aproximadamente 74% dos filmes lançados comercialmente nos Estados Unidos entre 2000 e 2016 contaram com ao menos um dublê creditado na equipe técnica, o que indica que a maioria das produções inclui alguma cena de risco que exige especialistas em acrobacias. No Brasil, essa proporção é significativamente menor, produções nacionais que utilizam dublês ainda são relativamente esporádicas, concentrando-se em obras de ação policial, comédia física ou telenovelas com sequências perigosas. Embora não haja um percentual preciso, sabe-se que muitas produções brasileiras prescindem do uso de dublês por não incluírem cenas de alto risco, ou optam por truques de filmagem mais simples.
De modo geral, “as produções de ação não são tão comuns quanto nos EUA, mas as produtoras (brasileiras) ainda procuram por dublês com relativa frequência” para atender a demandas pontuais por cenas perigosas. Esse cenário sugere que, apesar do mercado reduzido, há uma demanda existente e relativamente estável pelos serviços de dublês no Brasil, ainda que em patamares bastante inferiores aos do contexto norte-americano.
No que tange à distribuição dos profissionais, nos Estados Unidos os dublês atuam em diversos segmentos: cinema de Hollywood, produções independentes, séries de TV, comerciais, parques temáticos (com shows ao vivo) e até em videogames, por meio de captura de movimentos (motion capture). Essa diversificação amplia consideravelmente as frentes de trabalho disponíveis. No Brasil, os dublês também encontram oportunidades em múltiplos segmentos, com ênfase na televisão, particularmente em novelas e séries dramáticas que eventualmente requerem cenas de ação, e na publicidade. Já o cinema brasileiro, embora conte com alguns filmes de ação e policiais de destaque, historicamente produz um volume maior de dramas e comédias, gêneros nos quais o uso de dublês é menos frequente.
Ainda assim, eventos recentes, como a crescente presença de plataformas de streaming produzindo conteúdo de ação localmente e as coproduções internacionais filmadas no país, sinalizam uma possível expansão das oportunidades para os dublês brasileiros, ponto que será discutido mais adiante.
Estrutura da indústria cinematográfica e televisiva
A disparidade entre Brasil e Estados Unidos em relação à profissão de dublê se enraíza, em grande medida, nas diferenças estruturais das indústrias de cinema e TV de cada país. Nos Estados Unidos, a indústria cinematográfica – centrada em Hollywood – possui um sistema de estúdios estabelecido há mais de um século, com altos orçamentos e especialização acentuada de funções. Em uma grande produção hollywoodiana, é comum haver um stunt coordinator (coordenador de dublês) responsável exclusivamente pelas cenas de ação, além de equipes segmentadas: dublês para lutas, dublês motoristas (precision drivers), profissionais de rigging (sistemas de cabos e içamento), duplos de corpo para atores principais, entre outros. Essa segmentação permite um nível de segurança e qualidade elevados, pois cada aspecto perigoso é conduzido por especialistas. Nos bastidores, as filmagens de ação muitas vezes ocorrem em segunda unidade, com diretor próprio, dedicada somente às cenas de dublês e efeitos físicos.
Ademais, a própria escala de produção nos EUA faz com que sejam necessários muitos profissionais: em um filme de ação de grande porte, há dezenas de dublês no set simultaneamente, seja para compor batalhas campais, perseguições automobilísticas ou para servirem de substitutos a diversos atores do elenco principal e de apoio.
No Brasil, a estrutura da produção audiovisual é menor e mais enxuta, o que se reflete diretamente na forma como os dublês são integrados ao processo. As produções cinematográficas nacionais raramente dispõem de orçamentos que permitam a manutenção de grandes equipes exclusivas de dublês; em muitos casos, um mesmo profissional atua como coordenador de cenas de risco e também como dublê em cena, quando necessário. As equipes costumam ser reduzidas, frequentemente compostas por um coordenador de ação e alguns dublês multicompetentes, capazes de atender a diferentes demandas. Por exemplo, um único dublê brasileiro pode acumular habilidades em artes marciais, direção de veículos e manobras em altura, adaptando-se às diversas exigências de uma novela ou filme. Essa versatilidade é valorizada no mercado local, justamente devido à menor oferta de especialistas altamente segmentados.
Além disso, em vez de manter equipes fixas nos estúdios, é comum que as produtoras brasileiras entrem em contato com escolas ou grupos de dublês sempre que o roteiro exige cenas perigosas. Na prática, muitas vezes “consultam os próprios centros de treinamento à procura desses profissionais”, o que revela o papel relevante que as academias especializadas desempenham como forma de agenciamento. Há, ainda, equipes estabelecidas, como a Dublês Brasil, Stuntmen Team, sediada em São Paulo, que mantém um quadro fixo de coordenadores de ação e dublês experientes, complementado por uma rede de freelancers especializados em modalidades específicas (como parkour, motociclismo, entre outras), acionados conforme a necessidade dos projetos. Essa estrutura híbrida, formada por um núcleo fixo e colaboradores externos, é uma adaptação ao volume irregular de trabalho e à diversidade de demandas das produções nacionais.
Na televisão, os contrastes entre Brasil e Estados Unidos também são notáveis. A TV americana produz inúmeras séries de ação, policiais e de ficção científica que empregam regularmente dublês, desde cenas de luta em seriados de super-heróis até sequências arriscadas em dramas policiais semanais. As emissoras e plataformas de streaming nos EUA destinam verbas significativas para coordenadores de dublês em suas produções, mantendo protocolos de segurança e planejamento de ação semelhantes aos do cinema.
Já a televisão brasileira é tradicionalmente dominada pelas telenovelas, que privilegiam dramas pessoais e romances. Ainda assim, especialmente a partir da década de 2010, aumentou a presença de sequências de ação em folhetins e séries nacionais, com o objetivo de agregar dinamismo às tramas. Grandes redes, como a TV Globo, frequentemente recorrem a dublês para cenas de acidentes, tiroteios cenográficos ou manobras perigosas envolvendo personagens centrais. Um exemplo recente é a novela Cara e Coragem (2022), cuja própria premissa envolvia protagonistas que trabalham como dublês profissionais, uma rara representação da categoria na televisão brasileira. Nesta obra, diversas cenas de ação, como saltos e lutas, foram coreografadas e executadas por dublês, demonstrando que a estrutura televisiva nacional pode, sim, comportar esses profissionais quando o gênero narrativo o exige.
Em suma, embora a indústria televisiva brasileira seja menor, ela vem incorporando gradativamente elementos dos modelos internacionais, inclusive no que se refere ao uso e à coordenação de dublês, movimento impulsionado, sobretudo, por coproduções internacionais e pelas exigências de um público cada vez mais habituado a sequências de ação de alta qualidade.
Associações, sindicatos e legislação trabalhista
Um fator crucial que diferencia o contexto profissional dos dublês nos Estados Unidos e no Brasil é o grau de organização sindical e o amparo oferecido pelas leis trabalhistas específicas. Nos Estados Unidos, os dublês de ação são amplamente representados pelo influente sindicato SAG-AFTRA. Por integrarem o sindicato de atores e demais profissionais do audiovisual, os dublês norte-americanos usufruem dos benefícios decorrentes de acordos coletivos firmados com os estúdios. Isso implica que produções sindicalizadas devem obedecer a normas claras quanto à contratação, jornada de trabalho, remuneração mínima e medidas de segurança para cenas de risco.
Os stunt performers sindicalizados contam com pisos salariais definidos em convenção coletiva, por exemplo, a diária mínima de um dublê membro do SAG-AFTRA era de aproximadamente US$1.030 em 2020, com adicionais conforme o grau de periculosidade e a complexidade das cenas. Esse valor é significativamente superior aos praticados no Brasil, reflexo tanto de uma economia mais robusta quanto da força sindical que sustenta a categoria nos EUA.
Além do SAG-AFTRA, existem associações profissionais dedicadas exclusivamente aos dublês e coordenadores de dublês, como a Stuntmen’s Association of Motion Pictures (fundada em 1961) e grupos como Stunts Unlimited, que reúnem profissionais de elite para promover treinamento, networking e a defesa de interesses específicos da classe. Embora essas entidades não possuam poder sindical, exercem um papel relevante na promoção de padrões de excelência e segurança nas produções.
Ademais, comitês internos do SAG-AFTRA, como o Comitê de Segurança e Dublês, atuam na elaboração de diretrizes técnicas e na recomendação de práticas e equipamentos que visam à redução de riscos durante as filmagens. Ainda assim, acidentes graves continuam a ocorrer e frequentemente impulsionam melhorias nas normas. Tragédias como as mortes de dublês em 2017 nas filmagens de The Walking Dead e Deadpool 2 tiveram ampla repercussão e estimularam debates sobre a necessidade de protocolos mais rígidos e de uma supervisão mais eficaz em ambos os países.
Nos Estados Unidos, cada grande estúdio costuma seguir manuais detalhados de segurança e, frequentemente, contrata coordenadores de dublês altamente experientes para gerir riscos e garantir o cumprimento de normas regulatórias, incluindo leis de segurança do trabalho e apólices de seguro específicas para elenco e equipe técnica.
No Brasil, a organização trabalhista dos dublês de ação é menos centralizada. Não existe um sindicato exclusivo para essa categoria; em geral, os profissionais se vinculam aos sindicatos de artistas de suas respectivas regiões, como o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões (SATED), presente em diversos estados. A regulamentação da atividade artística no país é definida pela Lei nº 6.533/1978, que estabelece que todo artista ou técnico de espetáculos, categoria na qual os dublês se enquadram, deve possuir registro profissional junto à Delegacia Regional do Trabalho (DRT) para atuar legalmente.
Esse registro, mediado pelos sindicatos de artistas, formaliza o exercício da profissão e, teoricamente, garante aos dublês os direitos trabalhistas assegurados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Na prática, porém, muitos profissionais atuam como autônomos ou por meio de contratos temporários de prestação de serviços, o que pode dificultar o o a benefícios trabalhistas tradicionais, como 13º salário, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e seguro-desemprego.
Ainda assim, quando contratados diretamente por produtoras ou emissoras sob regime celetista, os dublês brasileiros podem ter o às proteções previstas na legislação trabalhista, inclusive adicionais de insalubridade ou periculosidade, desde que essas condições sejam formalmente reconhecidas.
Em termos de representação, alguns dublês brasileiros relatam filiação a associações ou grupos informais que buscam a valorização da profissão. No entanto, diferentemente do SAG-AFTRA, o SATED (ou órgãos equivalentes) nem sempre possui mesas de negociação específicas para as demandas dos dublês, uma vez que representa um espectro amplo de artistas, incluindo atores, modelos e performers em geral. Ainda assim, casos de abuso ou de falta de segurança em sets de filmagem podem mobilizar ações sindicais mais amplas. Por exemplo, denúncias sobre condições inseguras durante gravações de novelas ou filmes têm levado sindicatos de artistas a cobrar providências das emissoras, estendendo essa proteção também aos dublês envolvidos.
De maneira geral, observa-se que a estrutura sindical brasileira voltada para os dublês é menos especializada, o que favorece negociações individuais e pode dificultar a consolidação de direitos específicos da categoria. Por outro lado, a legislação brasileira reconhece os dublês dentro do conceito de “artistas e técnicos”, garantindo-lhes respaldo legal como profissionais. Assim, mesmo sem um sindicato exclusivo, os dublês podem recorrer a instrumentos jurídicos para reivindicar condições dignas de trabalho e o cumprimento das normas de segurança aplicáveis, como as Normas Regulamentadoras de Segurança e Saúde no Trabalho, que se estendem aos sets de filmagem e abrangem, por exemplo, o manuseio de armas cenográficas e o uso de efeitos pirotécnicos.
Em síntese, enquanto nos Estados Unidos os dublês se beneficiam de uma forte tradição sindical e de associações específicas que os organizam e protegem, no Brasil o arcabouço de proteção é mais difuso, sustentado por leis gerais e por sindicatos de atuação ampla. Essa diferença estrutural influencia diretamente aspectos como a negociação de cachês, o o a seguros e até mesmo a capacidade da categoria de pressionar por reconhecimento institucional, como será ilustrado adiante na discussão sobre premiações.
Relevância cultural e econômica
Os dublês de ação contribuem significativamente para a cultura popular e movimentam parcelas importantes da economia audiovisual em ambos os países, ainda que em escalas distintas. Nos Estados Unidos, a figura do dublê é peça-chave no sucesso de filmes de ação que se tornaram fenômenos culturais globais, desde as clássicas aventuras de Indiana Jones e Missão: Impossível até os contemporâneos filmes de super-heróis da Marvel e da DC. Esses produtos culturais geram bilhões de dólares em bilheteria e merchandising, devendo grande parte de seu apelo às cenas de ação empolgantes viabilizadas pelos dublês.
Cenas icônicas, como saltos impossíveis, lutas elaboradas ou perseguições cinematográficas, entram para o imaginário coletivo e muitas vezes tornam-se referências na história do cinema, embora o público em geral raramente conheça os nomes por trás dessas façanhas. Culturalmente, o arquétipo do “herói de ação” é exaltado no cinema americano e, por extensão, o trabalho dos dublês tem relevância na construção desses heróis na tela grande.
Economicamente, estima-se que o segmento de produção de cenas de ação envolve altos investimentos em equipe, seguros, equipamentos de segurança, treinamento e efeitos especiais práticos, compondo uma pequena indústria dentro da indústria cinematográfica. Em Hollywood, existem empresas especializadas em cenas de risco, escolas de formação de dublês e fornecedores de tecnologias (como cabos de suspensão, airbags de queda e armas cenográficas), o que gera empregos e estimula a inovação.
No Brasil, a relevância cultural dos dublês de ação, embora menos visível, também está presente. Filmes brasileiros que marcaram época no gênero ação/policial, como Tropa de Elite (2007) e sua continuação, contaram com equipes de dublês e coordenadores para realizar cenas realistas de tiroteios e combates corpo a corpo. Essas obras não apenas foram sucessos de bilheteria nacional, mas também influenciaram debates sociais e ganharam projeção internacional, demonstrando que a expertise dos dublês brasileiros pode atender a altos padrões quando requisitada. Além disso, produções televisivas com elementos de ação, ainda que não predominantes, ajudam a diversificar a teledramaturgia local e oferecem ao público doméstico um entretenimento mais variado. Cenas de ação bem executadas em novelas ou séries brasileiras podem gerar grande repercussão nas redes sociais e na mídia, comprovando que há um valor de espetáculo associado ao trabalho dos dublês que impacta o engajamento do público.
Em termos econômicos, porém, o montante movimentado pelos dublês no Brasil é relativamente modesto quando comparado ao americano. Os cachês locais são mais baixos e o volume anual de projetos que demandam cenas arriscadas é reduzido. Mesmo assim, há uma cadeia produtiva, ainda que pequena: centros de treinamento de dublês oferecem cursos e workshops, alguns profissionais prestam consultoria em segurança para sets, e equipes como a já citada Dublês Brasil atuam em publicidade, eventos e espetáculos, diversificando fontes de renda. Um exemplo de evento cultural e econômico são os shows ao vivo de dublês em parques temáticos brasileiros (como as apresentações no Beto Carrero World), que empregam esses profissionais e atraem turismo, evidenciando outra faceta do impacto econômico do setor.
Um ponto a destacar é que a globalização do entretenimento vem criando pontes entre os dois mercados. Produções estrangeiras filmadas parcialmente no Brasil, como filmes de Hollywood com cenas no Rio de Janeiro ou na Amazônia, frequentemente contratam dublês e coordenadores locais para auxiliar nas filmagens, injetando recursos e proporcionando transferência de conhecimento tecnológico e artístico. Por sua vez, alguns dublês brasileiros buscam oportunidades fora do país: há relatos de profissionais que migraram para Hollywood em busca de carreiras mais promissoras ou que participaram de mega produções internacionais, contribuindo com suas habilidades e trazendo diversidade cultural à comunidade global de dublês. Essa circulação evidencia que a profissão tem um componente transnacional, e a cultura de bastidores dos dublês é compartilhada além das fronteiras, um dublê brasileiro e um americano compreendem os mesmos desafios de executar uma queda de altura ou coreografar um combate, ainda que atuem em mercados diferentes.
Em suma, culturalmente, os dublês moldam a forma como o cinema e a TV contam histórias de aventura e ação, enquanto economicamente viabilizam um nicho especializado da produção audiovisual. No Brasil, esse valor cresce de forma lenta, porém constante, e nos EUA, já consolidam esse nicho como parte integrante de um gigantesco complexo industrial de entretenimento.
Valorização profissional e reconhecimento
Historicamente, uma queixa comum entre os dublês de ação, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, é a subvalorização do seu trabalho em comparação à notoriedade e às recompensas concedidas pela indústria. Os atores cujas cenas perigosas são duplicadas costumam receber os aplausos e prêmios, enquanto os dublês permanecem anônimos para o grande público. Contudo, observa-se, nos últimos anos, um movimento crescente, sobretudo nos EUA, em prol do reconhecimento desses profissionais. A criação de uma categoria no Oscar dedicada à coordenação de dublês, denominada “Melhor Design de Acrobacias”, representa um marco significativo nessa conquista. Trata-se de uma resposta aos apelos históricos da comunidade cinematográfica, que por décadas clamou por essa inclusão. Atores e diretores renomados, como Brad Pitt e Quentin Tarantino, já haviam defendido publicamente a importância de premiar os dublês de ação, e abaixo-assinados com dezenas de milhares de s foram apresentados à Academia.
A partir de 2028, com a entrega do primeiro Oscar aos dublês, espera-se que a categoria ganhe holofotes e seja formalmente equiparada a outras funções técnicas, como efeitos visuais, montagem e som, na maior premiação do cinema mundial.
Além do Oscar, existem outras formas de reconhecimento no meio norte-americano. O Screen Actors Guild Awards (SAG Awards), prêmio promovido pelo sindicato dos atores, já inclui há anos categorias exclusivas para dublês, especificamente, prêmios de Melhor Elenco de Dublês em cinema e televisão, concedidos às equipes de dublês das produções mais destacadas do ano. Embora esses prêmios não tenham a mesma visibilidade do Oscar, representam uma honra vinda dos próprios pares e ajudam a valorizar o trabalho coletivo dos performers de ação.
Outra iniciativa notável é o Taurus World Stunt Awards, cerimônia anual criada no início dos anos 2000, dedicada integralmente a premiar as melhores cenas de dublês no cinema mundial, com categorias como “Melhor Luta”, “Melhor Trabalho em Altura”, “Melhor Acidente de Carro” e outras. Patrocinada por empresas e apoiada por astros de Hollywood, essa premiação especializada funciona como uma celebração interna da comunidade de dublês, oferecendo troféus e reconhecimento público dentro do seu nicho. Embora o grande público acompanhe pouco o Taurus Awards, seu surgimento já evidencia o desejo de valorizar esses artistas.
Além disso, muitos atores de primeira linha têm feito questão de elogiar e agradecer seus dublês em entrevistas e discursos. Esse tipo de reconhecimento pessoal, ainda que simbólico, ajuda a trazer esses profissionais para a luz. Um caso midiático emblemático foi o filme Era Uma Vez em… Hollywood (2019), em que Brad Pitt interpretou um dublê fictício, Cliff Booth, e acabou vencendo o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante pelo papel. A repercussão em torno desse personagem despertou a curiosidade do público sobre a profissão e foi vista como uma homenagem indireta aos dublês reais, com Pitt destacando, em seu discurso, a importância desses profissionais nas produções de ação. Conforme noticiado, “a profissão voltou aos holofotes desde que Brad Pitt interpretou o debochado e controverso Cliff Booth”, ou seja, o tema “dublês” ganhou destaque renovado na cultura popular após essa representação.
No Brasil, a valorização profissional dos dublês de ação ainda enfrenta desafios significativos. Até o momento, não existem categorias específicas em grandes premiações nacionais, como o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, para reconhecer coordenadores ou elencos de dublês. O reconhecimento, geralmente, ocorre de forma indireta, por meio de prêmios técnicos concedidos às produções como um todo. Por exemplo, uma novela ou filme que vença nas categorias de melhor cena ou efeitos especiais acaba celebrando implicitamente o trabalho dos dublês envolvidos, sem que estes recebam prêmios individuais.
Em termos de remuneração, a diferença em relação aos Estados Unidos é considerável. Conforme mencionado, um dublê sindicalizado em Hollywood tem garantia de pelo menos US$1.000 por dia de trabalho, enquanto no Brasil, segundo fontes especializadas, o cachê mínimo por cena gira em torno de R$150, e a remuneração mensal de um dublê experiente dificilmente ultraa R$6.000. Comparativamente, isso significa que um único dia de trabalho de um dublê nos EUA pode valer quase o mesmo que um mês inteiro de trabalho de um dublê veterano no mercado brasileiro, um indicativo concreto da menor valorização financeira no contexto local.
Mesmo considerando diferenças no custo de vida e nos orçamentos médios das produções, essa disparidade acentua-se e reflete, entre outros fatores, a menor pressão sindical no Brasil, bem como a oferta abundante de mão de obra que atua por cachês reduzidos, muitas vezes movida pela paixão pela profissão ou pela busca de experiência.
Outra faceta da valorização profissional está relacionada à visibilidade e ao prestígio. Nos Estados Unidos, alguns dublês de destaque conseguem construir carreiras paralelas como coordenadores de ação respeitados ou até realizar a transição para a direção de filmes de ação, casos emblemáticos são Chad Stahelski (ex-dublê de Keanu Reeves e diretor da franquia John Wick) e David Leitch (ex-dublê de Brad Pitt e diretor de Deadpool 2). Esses exemplos demonstram que existem caminhos claros para o crescimento profissional e o reconhecimento dos talentos no cenário norte-americano.
No Brasil, embora essa transição seja mais rara, ela não é inédita. Alguns dublês tornam-se coreógrafos de lutas ou coordenadores de ação requisitados, atuando nos bastidores de diversas produções. Outros migram para áreas relacionadas, como efeitos especiais práticos ou treinamento de elenco para cenas de ação. No entanto, o mercado reduzido faz com que muitos talentos fiquem subaproveitados ou precisem acumular funções, atuando simultaneamente como dublê e ator coadjuvante em pequenas falas, ou exercendo outras profissões para complementar a renda, conforme será abordado na próxima seção.
Dessa forma, embora os dublês brasileiros sejam respeitados no set e gozem de boa camaradagem com as equipes, a valorização profissional formal, seja no aspecto financeiro ou no reconhecimento honorífico, ainda é limitada em comparação com os avanços observados no exterior. Iniciativas voltadas ao maior reconhecimento, como workshops, matérias em mídia especializada e eventos de demonstração, vêm contribuindo para dar visibilidade aos dublês nacionais, mas ainda há amplo espaço para evolução, possivelmente aprendendo com as experiências internacionais, como a criação da categoria de dublês no Oscar.
Em síntese, enquanto nos EUA observa-se uma tendência crescente de valorização, com salários médios mais altos e inclusão em premiações de prestígio, no Brasil a profissão ainda enfrenta desafios para alcançar reconhecimento e recompensas proporcionais aos riscos e habilidades envolvidos.
Oportunidades de carreira
As oportunidades de carreira para dublês de ação podem variar significativamente entre o Brasil e os Estados Unidos, refletindo não apenas o tamanho dos mercados, mas também a cultura profissional e as exigências específicas de cada indústria. Nos Estados Unidos, embora o campo seja bastante competitivo, existe uma diversidade relativamente ampla de possibilidades. Um dublê iniciante costuma começar em pequenas produções independentes ou em parques temáticos e, à medida que acumula experiência e contatos, pode aspirar a integrar equipes de produções maiores. A progressão típica inclui especializações, por exemplo, tornando-se dublê especializado em direção veicular, cenas envolvendo fogo, entre outras áreas, ou manter uma versatilidade que permita atuar em equipes fixas de estúdios ou sob a coordenação de determinados profissionais.
Alguns dublês conseguem trabalhar praticamente o ano todo, migrando de um projeto a outro, especialmente aqueles baseados em polos produtivos como Los Angeles, Atlanta ou Vancouver (embora esta última esteja no Canadá, é fortemente integrada ao mercado hollywoodiano). No entanto, mesmo nos EUA, apenas uma parcela dos mais de sete mil dublês sindicalizados possui trabalho suficiente para se dedicar exclusivamente à profissão. Os profissionais que se destacam podem ascender a posições de stunt coordinator (coordenador de dublês), função de liderança que normalmente implica maiores cachês e responsabilidade sobre o planejamento e execução das cenas de ação.
Outra via de crescimento no mercado norte-americano é a atuação como second unit director (diretor de segunda unidade), responsável não apenas pelos dublês, mas por toda a filmagem das sequências de ação. Muitos coordenadores experientes são convidados a dirigir essas cenas, consolidando-se como cineastas especializados no gênero. Esse tipo de oportunidade praticamente não existe no Brasil, devido à menor segmentação e estruturação das equipes nas produções locais.
No Brasil, as oportunidades de carreira para dublês são mais limitadas em número, resultando em trajetórias profissionais menos lineares. É comum que dublês brasileiros precisem acumular outras ocupações para complementar a renda, especialmente nos primeiros anos de atividade. Muitos ingressam na profissão provenientes de áreas correlatas: atletas de artes marciais, ginastas, praticantes de parkour, policiais ou bombeiros, devido à familiaridade com situações de risco, frequentemente migram para o trabalho de dublê de forma parcial.
Uma reportagem que acompanhou um curso de formação de dublês em São Paulo identificou entre os alunos bombeiros, judocas, atletas de MMA, patinadores e outros competidores esportivos, todos treinando nos fins de semana com o objetivo de, futuramente, viver exclusivamente da atuação em cenas de ação. No entanto, até alcançarem essa estabilidade, “apesar de já terem participado de cenas em cinema, televisão e publicidade, ainda mantêm outras profissões no cotidiano, na verdade, buscam na formação e no aperfeiçoamento uma oportunidade para se dedicar exclusivamente à profissão.”
Em suma, o cenário descrito é o de uma carreira muitas vezes instável, com projetos espaçados e insuficientes para garantir sustentação financeira contínua. Dublês experientes no Brasil relatam períodos de inatividade entre uma produção e outra, recorrendo a trabalhos alternativos, como atuar como dublê em eventos publicitários esporádicos, participar de pegadinhas televisivas ou exercer atividades profissionais totalmente distintas nos intervalos.
Entretanto, há também casos de sucesso e caminhos de especialização no mercado brasileiro. Alguns dublês consolidam parcerias duradouras com determinados produtores ou diretores, tornando-se referências e sendo convocados com frequência para projetos. Por exemplo, coordenadores de ação que colaboram regularmente com a TV Globo em novelas e séries costumam empregar suas equipes de confiança de forma quase contínua.
Além disso, existem oportunidades no meio publicitário: comerciais de alto orçamento eventualmente demandam cenas arriscadas, como manobras com carros ou saltos, criando nichos para dublês em campanhas de marketing. Eventos ao vivo, tais como shows de intervalo em competições esportivas ou apresentações de inauguração, por vezes incorporam performances de ação que requerem dublês treinados.
Cada uma dessas frentes, contudo, tende a ser esporádica. Por essa razão, alguns profissionais optam por empreender: abrem suas próprias escolas de dublês ou empresas de coordenação de riscos, oferecendo serviços de treinamento para atores e consultoria de segurança para produtoras, o que garante uma fonte de renda mais estável quando não estão atuando diretamente.
A carreira acadêmica ou técnica também é uma possibilidade, embora menos comum, alguns profissionais tornam-se instrutores de artes cênicas especializados em movimento e ação física.
Uma diferença notável é que, nos EUA, devido à vasta rede de produções, os dublês têm maior possibilidade de mobilidade geográfica e diversificação, eles podem viajar internacionalmente acompanhando filmagens; por exemplo, um dublê de Hollywood pode ser enviado para gravar cenas no exterior ou integrar uma produção estrangeira como consultor. No Brasil, raramente as produções locais envolvem deslocamentos internacionais e, quando equipes estrangeiras filmam no país, tendem a utilizar seus próprios coordenadores principais, empregando os brasileiros mais como complementares ou assistentes, o que limita a projeção internacional da carreira.
Dito isso, profissionais brasileiros que dominam o inglês e têm disposição para migrar podem buscar oportunidades fora do país. Atualmente, há dublês brasileiros trabalhando em produções nos EUA, Europa e até na Ásia, aproveitando a expansão global da demanda por performers de ação.
Em termos de longevidade na carreira, ser dublê é uma profissão fisicamente exigente, tanto no Brasil quanto nos EUA, com riscos significativos de lesões que podem abreviar o tempo de atuação. O auge da carreira costuma ocorrer entre os 20 e 40 anos, período em que o profissional alia vigor físico e experiência. Após essa fase, muitos optam por reduzir o ritmo, migrando para funções de coordenação.
Nos Estados Unidos, existe um e mais estruturado para essa transição, oferecido tanto pelo sindicato, que fornece plano de saúde e outras assistências aos membros veteranos, quanto pelas oportunidades de ministrar workshops ou trabalhar como diretor de segunda unidade. No Brasil, a ausência de uma estrutura de apoio semelhante faz com que alguns dublês veteranos abandonem completamente a profissão, por não conseguirem competir fisicamente com os mais jovens, o que representa uma perda valiosa de conhecimento para a indústria local. Embora iniciativas para integrar dublês seniores como consultores em produções possam aproveitar essa experiência, elas ainda são pouco sistemáticas.
Resumidamente, as oportunidades de carreira para dublês nos EUA são mais amplas e variadas, ainda que a concorrência seja intensa, enquanto no Brasil o profissional precisa ser resiliente e criativo para se manter na área. A paixão pela adrenalina e pelo cinema de ação frequentemente motiva esses indivíduos a persistir apesar das incertezas. Como relatam os próprios dublês, o trabalho “não é nada burocrático e está cheio de desafios”, oferecendo a recompensa intrínseca de viver as aventuras da ficção na pele, algo que atrai muitos jovens talentos. O desafio, porém, reside em transformar essa paixão em um sustento duradouro, o que no Brasil depende de melhorias estruturais na indústria e, por ora, de muito esforço individual de cada profissional.
Visibilidade na mídia e percepção pública
A figura do dublê de ação sempre viveu uma dualidade em termos de visibilidade: ao mesmo tempo em que suas cenas chegam a milhões de espectadores, sua identidade permanece oculta, literalmente nas sombras do astro principal. Tradicionalmente, o grande público sabia pouco, e muitas vezes pouco se interessava, sobre quem eram os dublês por trás das cenas arriscadas de seus filmes e novelas favoritos. Nos Estados Unidos, essa situação tem mudado gradualmente. Programas de bastidores e extras de DVDs frequentemente destacam o “making of” de cenas perigosas, apresentando dublês e coordenadores ao público. Alguns dublês tornaram-se personalidades nas redes sociais, compartilhando vídeos de seus trabalhos e treinos, conquistando seguidores e aumentando a conscientização sobre o ofício. Mesmo assim, de modo geral, o reconhecimento popular dos dublês individuais permanece limitado.
No Brasil, até muito pouco tempo, o público em geral quase não tinha contato com a existência dos dublês; muitos sequer imaginavam que atores de novelas usavam duplas em sequências de risco. Contudo, essa situação vem evoluindo: portais de notícias e programas de TV eventualmente apresentam perfis de dublês, e casos específicos chamam atenção; por exemplo, quando algum acidente ocorre em filmagem, a notícia destaca o papel do dublê, ou quando um ator global agradece publicamente seu dublê. A novela “Cara e Coragem” representou um marco na exposição do tema, ao colocar dublês como protagonistas da história, o que levou os telespectadores a se familiarizarem com a rotina e os termos da profissão, mesmo que dramatizados. Esse tipo de representação na ficção nacional é importante para moldar a percepção pública, pois tira o dublê do anonimato e o posiciona como herói da narrativa, ainda que fictício.
Ainda assim, persiste em ambos os países um certo desconhecimento e até concepções equivocadas sobre a profissão. Alguns imaginam que os dublês vivem constantemente em perigo ou que qualquer pessoa corajosa pode se tornar um dublê, subestimando o intenso treinamento técnico envolvido. Na realidade, os dublês profissionais seguem protocolos rigorosos e calculam cada movimento, e comunicar isso ao público ajuda a reforçar o respeito pela categoria.
Recentemente, a comoção em torno da ausência de uma categoria dedicada no Oscar (agora suprida) também trouxe discussões às redes sociais, com muitos fãs expressando surpresa pelo fato de dublês nunca terem sido premiados. Esse debate, ao menos no contexto americano, ampliou a empatia do público, que ou a perceber que aqueles que “colocam a vida em risco” em prol do entretenimento merecem reconhecimento. No Brasil, a repercussão da notícia sobre o Oscar de dublês também estimulou matérias explicativas na mídia local, educando o público sobre quem são esses profissionais e por que se luta por essa valorização.
Apesar dessas melhorias, a essência do trabalho do dublê ainda é permanecer invisível na obra final, quanto mais imperceptível for a substituição do ator pelo dublê na cena, melhor realizado foi o trabalho. Ironicamente, isso significa que, quando um dublê executa sua tarefa com perfeição, o espectador não faz ideia de que ele esteve ali. Essa invisibilidade inerente dificulta a percepção pública sobre o quão indispensáveis esses profissionais realmente são.
Como mencionado em um artigo, “apesar da importância do trabalho dos dublês, eles se mantêm afastados dos holofotes” e, mesmo quando seus nomes aparecem nos créditos, “seus rostos continuam desconhecidos pelo grande público”. Essa constatação vale tanto para os brasileiros atuando dentro ou fora do país quanto para os dublês americanos: o público conhece Tom Cruise, mas não conhece Casey O’Neill, seu dublê em diversas cenas; conhece Rodrigo Lombardi, mas não o profissional que eventualmente o substitui em uma cena de ação.
Entretanto, dentro da própria indústria do entretenimento, os dublês costumam ser muito respeitados. Diretores e atores frequentemente elogiam a dedicação e a coragem dessas duplas de ação. No meio brasileiro, existem relatos anedóticos de atores renomados que reconhecem publicamente seus dublês em eventos ou nas redes sociais, o que ajuda a humanizar e dar visibilidade a esses profissionais.
A internet também abriu um espaço para que os dublês se promovam diretamente: muitos mantêm perfis mostrando os bastidores das gravações, as lesões curadas como verdadeiras “cicatrizes de batalha” e treinos impressionantes, conquistando iradores. Esse contato direto ajuda a melhorar a percepção pública, mostrando que os dublês são artistas altamente treinados e não apenas “aventureiros inconsequentes”, um estereótipo que, por vezes, associa erroneamente essa profissão.
O papel da mídia especializada é fundamental: revistas, sites e canais dedicados ao cinema têm incluído cada vez mais conteúdos sobre o trabalho dos dublês, inclusive no Brasil. Portais como UOL e Folha já produziram reportagens imersivas sobre escolas de dublês e entrevistas com profissionais da área. Esses materiais não só informam, como também reforçam a ideia de que ser dublê é uma profissão séria, que exige técnica e ética específicas, e não apenas um bico para quem “gosta de emoção” sem preparo, contribuindo para desfazer preconceitos.
Assim, a tendência é que a imagem pública do dublê de ação evolua do anonimato absoluto para um reconhecimento moderado, entendendo-o como parte crucial da magia do cinema e da TV. No Brasil, em especial, ainda há um longo caminho a percorrer: iniciativas como a criação de prêmios específicos em festivais nacionais, maior participação dos dublês em convenções de cultura pop, ou mesmo a consultoria de dublês em reality shows de competição (que destacam suas habilidades), poderiam ampliar sua visibilidade e valorização perante o grande público.
De qualquer forma, a conscientização avançou significativamente em relação a décadas atrás, e hoje é mais provável que um telespectador comum saiba responder à pergunta “afinal, quem são os dublês de ação?” com alguma propriedade, reconhecendo sua existência e importância.
Principais similaridades e diferenças
Ao sintetizar a comparação entre os mercados de dublês de ação no Brasil e nos Estados Unidos, destacam-se diferenças marcantes, ao mesmo tempo em que emergem semelhanças inerentes à natureza da profissão. A principal distinção reside na escala do mercado, os Estados Unidos possuem uma indústria robusta e globalizada, que demanda um número significativamente maior de dublês, oferecendo mais oportunidades e remunerações médias consideravelmente superiores. Já o Brasil opera em uma escala mais reduzida, com menor número de projetos que envolvem cenas de ação e, consequentemente, menos vagas de trabalho. Isso faz com que muitos dublês brasileiros precisem manter outras ocupações para garantir seu sustento, diante da irregularidade das contratações.
Esse contraste econômico também se reflete na estrutura produtiva: enquanto as produções hollywoodianas contam com equipes especializadas e segmentadas, incluindo dublês de diferentes especialidades, coordenadores dedicados e unidades de filmagem secundárias, as produções brasileiras costumam trabalhar com equipes mais enxutas e polivalentes, adaptadas a orçamentos s.
Outra diferença significativa está no grau de organização profissional e no apoio institucional oferecido aos dublês. Nos Estados Unidos, a existência de um sindicato forte, o SAG-AFTRA, juntamente com associações específicas da categoria, proporciona um respaldo trabalhista mais eficaz, garantindo pisos salariais elevados, seguros e voz ativa na defesa de condições de trabalho seguras.
No Brasil, apesar da presença de sindicatos de artistas e do reconhecimento formal da profissão na legislação, a categoria ainda carece de uma representatividade exclusiva e de acordos coletivos próprios. Na prática, os dublês negociam individualmente ou em pequenos grupos, o que enfraquece seu poder de reivindicação e pode resultar em condições de trabalho menos padronizadas. Por consequência, aspectos como segurança e padronização das condições laborais recebem regulamentação mais uniforme nos Estados Unidos, enquanto no Brasil essas condições variam bastante entre as produções, dependendo em grande parte da conscientização dos diretores ou produtores responsáveis.
No que diz respeito ao reconhecimento e valorização, também existem divergências marcantes entre os dois países. Embora historicamente os dublês tenham permanecido fora dos holofotes em ambas as realidades, nos Estados Unidos observa-se um avanço significativo: premiações específicas como o SAG Awards e o Taurus Awards, além da recente inclusão de uma categoria no Oscar, indicam um movimento crescente de reconhecimento institucional e público.
No Brasil, esse reconhecimento ainda é incipiente, não existem prêmios dedicados nem uma cultura consolidada de destacar os dublês em eventos oficiais, mantendo a valorização restrita principalmente aos bastidores. Essa realidade reflete-se na disparidade salarial já mencionada, bem como na percepção popular: é mais provável que um espectador americano tenha tido o a matérias sobre dublês de filmes renomados do que um espectador brasileiro acerca dos dublês de novelas ou produções locais.
Além disso, as oportunidades de progressão na carreira apresentam diferenças: nos EUA, um dublê pode ascender a coordenador de dublês ou até mesmo a diretor especializado em cenas de ação. Já no Brasil, a progressão tende a se limitar a funções de coordenação informal ou à senioridade dentro de um círculo profissional relativamente .
No entanto, ao lado dessas diferenças, existem similaridades fundamentais que permeiam a profissão independentemente do país. Uma delas é a natureza arriscada e técnica do trabalho: tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, ser dublê exige treinamento intenso, excelente preparo físico, apuro técnico e rigorosa atenção à segurança. Os profissionais de ambos os países compartilham a paixão por executar façanhas e o compromisso em minimizar riscos por meio de planejamento e habilidade.
As lesões e perigos são uma realidade possível em qualquer set de filmagem, apesar de protocolos mais rígidos nos EUA, incidentes ainda ocorrem, assim como no Brasil, lembrando constantemente que essa é uma ocupação de alto risco. Nesse sentido, dublês americanos e brasileiros enfrentam desafios semelhantes para manter o corpo saudável, superar medos e limites pessoais, e ainda assim entregar performances convincentes.
Outra similaridade está no anonimato relativo: mesmo nos EUA, onde o reconhecimento melhorou, a maior parte dos dublês continua desconhecida fora do meio cinematográfico, tal como ocorre no Brasil. O orgulho profissional de “fazer o trabalho e não aparecer” é um entendimento comum aos dublês de ambos os países, faz parte da ética da profissão auxiliar o ator a brilhar, permanecendo invisível no produto final.
A camaradagem e o senso de comunidade também marcam a categoria: dublês de todo o mundo relatam que o grupo é unido, quase como uma família ampliada, que compartilha experiências únicas de risco e confiança mútua. Essa solidariedade se manifesta tanto entre os dublês hollywoodianos quanto entre os brasileiros, que frequentemente treinam juntos e se apoiam mutuamente.
Outro ponto convergente é a busca por maior reconhecimento e melhores condições, uma luta global da categoria. Em diferentes graus, dublês de diversos países, incluindo Brasil e Estados Unidos, vêm se organizando, ainda que informalmente, para valorizar seu trabalho. Isso se manifesta em campanhas por premiações específicas, reivindicações para créditos mais destacados nos filmes (como ter seus nomes logo após o elenco principal) e propostas de melhorias contratuais.
Em ambos os mercados, há figuras apaixonadas pela profissão que atuam como defensoras da categoria: nos EUA, veteranos e até atores renomados assumem essa liderança; no Brasil, profissionais com décadas de experiência participam de debates públicos, concedem entrevistas e buscam criar associações para representar e defender seus interesses. Portanto, embora estejam em diferentes estágios, os profissionais compartilham globalmente a mesma essência na luta por visibilidade e valorização.
Em resumo, as diferenças entre os mercados de dublês do Brasil e dos Estados Unidos concentram-se principalmente na escala, envolvendo quantidade, recursos e oportunidades, e na formalização, como a presença de sindicatos, premiações e níveis salariais. Já as similaridades residem na essência da profissão: os riscos inerentes, às habilidades técnicas exigidas, o anonimato e as aspirações comuns de reconhecimento e respeito pelo trabalho realizado. Em ambos os contextos, fica claro que o dublê de ação é um profissional indispensável para a magia do audiovisual, seja nas superproduções de Hollywood, seja nas cenas marcantes da TV e do cinema brasileiros, e que merece ter sua trajetória valorizada e protegida onde quer que atue.
Considerações finais
A análise comparativa do mercado de dublês de ação no Brasil e nos Estados Unidos revela que, apesar da paixão comum pela profissão e dos desafios inerentes, esses profissionais atuam em contextos bastante distintos. Nos Estados Unidos, uma indústria robusta sustenta um ambiente mais estruturado, marcado por uma demanda ampla e um reconhecimento crescente, com sindicatos fortes e premiações específicas que valorizam a profissão. Já no Brasil, o cenário é mais modesto, exigindo dos dublês uma atuação multifacetada para manter a carreira, em meio a uma relativa invisibilidade e a retornos financeiros menos expressivos.
Contudo, observa-se que a profissão de dublê vem ando por transformações positivas em ambas as realidades. Nos Estados Unidos, iniciativas recentes, como a criação da categoria de dublês no Oscar e a presença contínua de premiações específicas para cenas de ação, consolidam uma tendência de maior reconhecimento e valorização pública desses artistas técnicos. No Brasil, embora de forma mais gradual, nota-se uma crescente conscientização no mercado: produtoras têm investido na melhoria das condições de segurança nos sets, novelas incorporam com maior frequência cenas de ação e trazem os dublês para o centro das narrativas, e a mídia nacional tem ampliado o espaço para a discussão sobre o trabalho desses profissionais.
A experiência prática de Thiago Luzzatto, autor deste artigo e dublê atuante em ambos os países, reforça que as trocas internacionais e o intercâmbio de conhecimentos podem beneficiar ambas as realidades,enquanto os dublês brasileiros podem se inspirar nas conquistas sindicais e artísticas dos colegas norte-americanos, a criatividade e versatilidade desenvolvidas no Brasil representam um diferencial apreciado no exterior.
Em última instância, reconhecer a relevância dos dublês de ação é reconhecer a magia por trás das cenas que emocionam plateias ao redor do mundo. São profissionais que, silenciosamente, encaram o impossível e emprestam suas habilidades para que as histórias ganhem vida, sem expor àqueles que protagonizam a narrativa a riscos desnecessários. Seja em Hollywood ou nos sets brasileiros, investir na valorização desses especialistas, por meio da melhoria das condições de trabalho, do treinamento contínuo, da remuneração justa e do devido crédito, representa investir na qualidade e na segurança do entretenimento oferecido ao público.
Espera-se que, com o ar do tempo, as disparidades aqui destacadas sejam reduzidas, e que a profissão de dublê seja reconhecida com igual respeito e entusiasmo em qualquer mercado. A troca de conhecimentos e a solidariedade internacional da comunidade de dublês continuarão a ser forças motrizes essenciais para essa evolução. Cabe, portanto, às indústrias e ao público de cada país reconhecer e aplaudir não apenas os heróis de ação fictícios na tela, mas também os heróis reais que atuam nos bastidores.
Referências bibliográficas
ARNONI, Helena. Como se tornar um dublê? Superinteressante, 22 fev. 2024. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-se-tornar-um-duble/. o em: 15 maio 2025.
BRASIL. Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978. Dispõe sobre a regulamentação das profissões de Artista e de Técnico em Espetáculos de Diversões. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6533.htm. o em: 15 maio 2025.
CINEMAÇÃO. Perigo e muita ação: conheça a profissão de dublê. 08 jun. 2022. Disponível em: https://cinemacao.com/2022/06/08/perigo-e-muita-acao-conheca-a-profissao-de-duble/. o em: 15 maio 2025.
CODECO, Taís. “Cara e coragem”, na vida real, a profissão de dublê de ação pode afetar a saúde do coração; entenda. O Globo, 17 jun. 2022. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2022/06/cara-e-coragem-na-vida-real-a-profissao-de-duble-de-acao-pode-afetar-a-saude-do-coracao-entenda.ghtml. o em: 15 maio 2025.
DANIEL, Marcelo. Tiro, porrada e bomba: como aprender a fazer cenas perigosas em uma escola para dublês. UOL Entretenimento, 12 fev. 2020. Disponível em: https://entretenimento.uol.com.br/reportagens-especiais/escola-de-dubles/. o em: 15 maio 2025.
INCRÍVEL. Revelamos os rostos de 10 dublês brasileiros que atuaram em produções de sucesso no cinema e na TV. [S.l.: Incrível], 2018. Disponível em: https://incrivel.club/articles/revelamos-os-rostos-de-10-dubles-brasileiros-que-atuaram-em-producoes-de-sucesso-no-cinema-e-na-tv-1064810/. o em: 15 maio 2025.
O GLOBO (AFP). Oscar terá prêmio para dublês a partir de 2028. O Globo, 13 abr. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2025/04/13/oscar-tera-premio-para-dubles-a-partir-de-2027.ghtml. o em: 15 maio 2025.
STEPHEN FOLLOWS. How many stunt performers work on a movie? 21 ago. 2017. Disponível em: https://stephenfollows.com/how-many-stunt-performers-work-on-a-movie/. o em: 15 maio 2025.
VAULT. Stunt performers – Career profile. [2025]. Disponível em: https://vault.com/professions/stunt-performers. o em: 15 maio 2025.